Uma das melhores definições que já li até hoje de audiofilia era que trata-se do reconhecimento de que a qualidade da reprodução afeta o aproveitamento da música. Concordo plenamente, mas é muito curioso perceber o quanto essa qualidade da reprodução é subjetiva. Consequentemente, existem diversas correntes muito divergentes no meio audiófilo – cada uma com suas peculiaridades, preferências, vantagens e também mitos e falsas verdades. No fundo é tudo uma questão de gosto.
No entanto, mesmo aqueles que preferem a eufonia ao invés da fidelidade, ainda tem grande preocupação com a neutralidade. Uma das preocupações da audiofilia é justamente que a reprodução seja próxima da performance original. Mesmo os audiófilos da “linha eufônica” exigem essa proximidade. E daí vem o tão buscado conceito de neutralidade.
Basicamente, um equipamento é neutro quando apresenta de forma passiva o sinal que lhe é fornecido, para que o resultado final seja o mais fiel possível à performance original. Eu mesmo uso e abuso desse termo. Mas será mesmo que isso é possível?
Pensemos primeiramente em como funciona um processo de gravação comum. Um instrumento acústico ou uma voz têm seus sons captados através de um microfone, que já impõe sua voz própria no sinal, e este é transmitido para um pré e então para a mesa através de cabos. Tanto os cabos quanto o pré e a mesa também têm influência no sinal. Caso o instrumento seja amplficado, pode-se gravá-lo usando um microfone num determinado amplificador – escolhido pelo artista – e aí o processo se repete, ou então ele pode ser ligado diretamente num pré que vai para a mesa de som – e nesse caso, existe uma necessidade ainda maior de efeitos, que simulam um amplificador, reverberações, etc.
Falando em reverberações, temos uma outra grande influência no processo: a acústica. Gravações de gêneros populares costumam ser realizadas em espaços acústicos mortos, ou seja, desenhados para o som não rebater. É uma experiência estranha, os sons nascem e morrem neles mesmos. O objetivo é gerar a gravação mais crua possível, e os efeitos de reverberação – necessários para que a música soe agradável – são adicionados artificialmente. Algumas gravações mais pretensiosas – ou gravações ao vivo de performances acústicas, como de música clássica – são realizadas em salas escolhidas a dedo por sua acústica. Nesse caso, são gravações mais puras.
Mas aí entra um outro problema: como é o palco sonoro imbuído na gravação? Se mais de um microfone for usado, o que é o caso em 99,9% das gravações, mesmo as com pretensões audiófilas – acho que a única gravadora que utiliza frequentemente um microfone só é a Chesky Records –, a mesclagem deles deve ser feita pelo técnico de som. Em gravações normais, de estúdio, o problema se agrava, porque todo o palco será inteiramente artificial: os instrumentos costumam ser gravados separadamente, e os efeitos de reverberação também são artificiais, então a espacialidade é totalmente fabricada.
Fora isso, temos também o fato de que as músicas são sempre mixadas e masterizadas – processos onde aplicam-se efeitos, equalizações, ajustes, overdubs, auto-tune… é um longo processo, e ao final ainda temos, normalmente, que nos render aos males da compressão, para que o resultado seja minimamente alto (leiam sobre a Loudness War).
Perceberam a quantidade de processos envolvidos? Mesmo em gravações com o puro objetivo de serem fiéis ao original, temos as mais diversas influências que deixam o que está gravado na mídia realmente distante do que realmente aconteceu quando o som foi gravado. Se formos até os gêneros populares, sujeitos a demandas bem diferentes, é melhor desistir…
O ponto é que até a mídia temos um longo caminho, e da mídia até a reprodução, sabemos bem o que acontece: DACs, toca-discos, pré amplificadores, powers, fones de ouvido, cabos, caixas de som, a acústica do ambiente… como podemos esperar que o que ouvimos seja exatamente o que aconteceu no dia da gravação?
Sei que ninguém espera isso dessa forma, é absolutamente impossível. Mas mesmo se diminuirmos nosso grau de exigência, e nos privarmos a exigir apenas que seja fiel ao que está na mídia em si, o que está na mídia foi produzido por um ser humano, com seu gosto pessoal, e conforme o que, de acordo com os seus ouvidos, nos seus monitores de referência, com os equipamentos de gravação disponíveis, no dia da mixagem e da masterização, lhe soava bom e próximo do evento original. Num outro estúdio, com outro técnico, o resultado seria diferente. E uma outra música, gravada num outro estúdio, com outro artista e outros equipamentos, terá sua mixagem feita de maneira diferente. Vai ser produzida e julgada em circunstâncias diferentes e o resultado vai atingir uma determinada “neutralidade” naquele momento que não seria necessariamente replicada se fosse reproduzida no estúdio do primeiro caso.
Consequentemente, o que está gravado naquele CD ou vinil não é a performance original. É uma interpretação, em muitos casos muito distante do evento que gerou a gravação. Novamente, qualquer som gravado está sujeito a isso – numa menor ou maior proporção.
E então, como podemos exigir neutralidade de um equipamento? Como pode ele ser “neutro” e renderizar com competência o Death Magnetic do Metallica ao mesmo tempo que mostra toda a humanidade e sinceridade do Dirt Floor, de Chris Whitley? Isso é absolutamente impossível. O que está na mídia já é distante do artista, que passou por diversas alterações, interpretações e subjetividades até chegar ali. Daí para o nosso fone ou caixa de som, o processo basicamente se repete, e no final das contas, o que ouvimos está sujeito ao nosso julgamento do que é neutro.
Devemos ter a consciência de que essa busca infindável pela neutralidade em qualquer gênero não é possível, e um equipamento que se dá muito bem com a visceralidade de um rock ou metal pesado dificilmente se dará bem com uma delicada performance de uma sonata de piano. Os processos de gravação foram distintos, o estilo dos equipamentos usados, das salas, dos técnicos e engenheiros de som e até mesmo as intenções dos artistas também são muito divergentes. Todo o processo, desde o acontecimento musical até a gravação trilhou caminhos diferentes, então para fazer a mídia voltar ao acontecimento, provavelmente precisaremos de equipamentos de reprodução diferentes.
Isso me lembra os Sennheiser Orpheus e HD800. Em termos absolutos, é possível dizer que o HD800 é mais neutro. Ele é mais passivo, enquanto o Orpheus segue uma linha mais eufônica. O problema é que o que ouço de músicas acústicas no HE90 me soa infinitamente mais neutro e envolvente do que o que ouço no seu contemporâneo, que me parece frio e seco. É mais humano, muito mais parecido com o que ouço de um violão tocando na minha frente. Ali existe um calor, uma envolvência que o HD800 não apresenta. Ele pode estar mais perto da mídia, mas quem está mais perto do acontecimento musical não é ele – é o Orpheus. Com suas sensívels colorações e particularidades, ele acaba voltando à performance original, enquanto o HD800 se limita à mídia.
O problema é que muitos audiófilos parecem não entender essa questão, e se perdem montando um sistema de dezenas ou centenas de milhares de dólares que soa perfeitamente bem com o CD de testes da Dynaudio, com músicas que eles não conhecem e não gostam, e depois restringem-se a ouvir e procurar gêneros que também soem bem no sistema que montaram. Qual o valor disso? A música e nossas preferências devem regir o sistema, não o contrário. De que adianta basear nosso suor e nosso investimento para construirmos algo que vai acabar ditando o que vamos ouvir? A música deveria ser o foco.
O resultado disso é o tão temido equipamentófilo: aquele que gasta tempo e – principalmente – dinheiro montando um sistema exorbitante para ficar ouvindo aquela peça de percussão excepcionalmente bem-gravada ou para ficar procurando toques de telefone, passarinhos cantando e galhos quebrando a 2,7km do microfone no momento da gravação.
Não estou em momento algum dizendo que não devemos procurar a neutralidade. Eu mesmo busco isso, mas acho que é muito importante termos consciência de que essa não passa de uma utopia, e o que ouvimos nunca vai ser absolutamente fiel ao que está na mídia e muito menos à performance original. Todo o processo é permeado por imperfeições e subjetivismos. É claro que é de nosso interesse que obtenhamos um alto nível de passividade de nossos equipamentos, mas não podemos nos render à obsessão do detalhamento e da neutralidade absoluta em detrimento do mais importante: a humanidade da música. O resultado pode ser uma desvirtuação dos objetivos desse hobby.
Devemos abraçar a ideia de que nunca conseguiremos essa passividade absoluta de nossos equipamentos, então faz sim muito sentido ter mais de um fone para diferentes ocasiões – cada um vai interpretar uma situação de uma forma diferente, e cada um deles vai calhar de estar “mais certo” em momentos diferentes. Quem vai decidir isso é você – e nessa decisão, logicamente respeitando alguns limites de tolerância, não existe errado.