Esse texto provavelmente vai causar revolta em muita gente. Quero deixar claro que a minha intenção ao escrever isso não é necessariamente fazer com que as pessoas parem imediatamente de acreditar no fenômeno, até porque eu não exatamente desacredito, é simplesmente trazer questões que parecem ser ignoradas pelos crentes. Poucos assuntos geram tanto debate no mundo da audiofilia, e meu objetivo não é necessariamente criar um novo. Mas ficaria muito feliz se soubesse que aqueles que leram o que vou escrever agora vão parar pra pensar antes de dizer que seus fones melhoraram após vinte horas de ruído rosa.
Acho que muitos, antes mesmo de lerem o texto, vão dizer: ouça! Mas aí é que está o problema. Será que, nesse aspecto, podemos mesmo confiar no que estamos ouvindo? Admito que posso sim ouvir a diferença. Mas, da mesma forma, eu vejo essa imagem se mexer e essas linhas serem completamente tortas. O que, como sabemos, não é verdade.
Sendo curto e grosso, o burn-in é o amaciamento de algum equipamento. A teoria por trás do fenômeno é que equipamentos, ao sair da linha de produção, não se encontram em perfeito estado de funcionamento – estado este que só será atingido após certo tempo de uso. Acho que o fenômeno começou a ser descrito em caixas de som, e aí, depois de um tempo, passou a afetar amplificadores, CD players e até cabos.
Milhares de audiófilos juram de pés juntos que encontram diferenças perfeitamente audíveis e evidentes após algum tempo de uso em aparelhos de som. Diariamente leio relatos como “os graves só se soltam após 100 horas”, “no início ele era duro, mas depois de 50 horas tocando música se soltou”. Pode ser que eles estejam certos? Claro que pode. Mas também pode ser que aquele maluco da esquina que disse que viu um unicórnio alado também esteja certo. Sei que é um exemplo grosseiro, e com isso não quero dizer que os dois relatos são “loucuras” de uma mesma categoria – meu intuito é mostrar que são percepções praticamente sem nenhuma evidência mas que, ao mesmo tempo, não têm como ser refutadas. Aliás, de acordo com a ciência, até onde sei, o burn-in não existe. Um fone já sai da linha de montagem com toda a elasticidade que ele terá. Um amplificador já começa tocando (exceto pelo tempo de aquecimento para o funcionamento ideal, mas isso é diferente e muito real) tanto quanto tocará no ápice de suas habilidades. Tudo bem; concordo que a ciência não explica tudo e muitas vezes erra. Mas é para se pensar.
Existem exceções: válvulas por exemplo, por trabalharem com temperaturas altas, talvez estejam mais sujeitas a algum tipo de estabilização. Mas a borracha que circunda um diafragma ou o papelão que o compõe, em teoria, já saem da linha de montagem exatamente como deveriam. Nesse texto, estou falando exclusivamente do amaciamento mais esotérico, como o de caixas, fones, cabos, CD players, amplificadores, etc.
O que me incomoda nessa história toda é que o fenômeno do burn-in foi amplamente vulgarizado e, aparentemente, tornou-se uma verdade universal para muitos entusiastas do áudio. Muitas pessoas, tanto iniciantes como experientes, leram a respeito de experiências de outros audiófilos com o fenômeno e, quando acharam que se depararam com ele, contaram para outros, que imaginaram que viram, e por aí vai.
O grande problema é que o burn-in é apenas uma das hipóteses para explicar uma mudança que nem sequer está comprovadamente ali.
Basicamente, 99% dos relatos (se não todos) que já li sobre o amaciamento de aparelhos é decorrente, invariavelmente, da experiência de algum usuário com esse aparelho. Esse usuário compra o equipamento, ouve, forma opiniões e, depois de um tempo (seja usando normalmente, seja deixando tocando ruído rosa), tem percepções diferentes. Explicam essa percepção com o burn-in. Ou seja, temos aqui uma hipótese: “o som do aparelho mudou”.
Antes de entrar no burn-in, temos de analisar essa hipótese. Primeiro de tudo, existe o fato de nós humanos sermos praticamente desprovidos de memória auditiva. Ela existe, mas é extremamente deficiente e está sujeita às mais diversas peças que nosso cérebro pode pregar. É realmente difícil formar uma memória perfeita de alguma experiência auditiva. Claro que temos uma boa ideia a respeito dela, mas detalhes são mais obscuros.
Outra questão é a de que nossa percepção acerca de alguma sonoridade muda constantemente. Quem nunca usou um fone por muito tempo, fez um upgrade e, quando voltou ao antigo, teve uma percepção completamente diferente? Nossos ouvidos se acostumam. É mais do que natural. Quando usava um Shure SE530 por exemplo, adorava os seus agudos. Quanto ouvi o Sennheiser IE8 pela primeira vez, o achei frio porque tinha muito mais agudos. Ao me acostumar com ele e voltar para o SE530, vi que ele na verdade praticamente não tinha agudos e era extremamente sombrio. Arrisco dizer que a grande maioria dos leitores vai se identificar com isso.
Agora, assimilando ao burn-in: o IE8 tem infinitamente mais graves que o SE530. Eu era acostumado ao Shure e gostava de sua presença nos graves. Quando ouvi o Sennheiser pela primeira vez, achei que a quantidade de graves era descomunal e desnecessária. Com o tempo, achei que eles ficaram mais equilibrados. Será que ele amaciou? Ou será que eu me acostumei com a sua quantidade de graves?
Essas duas possibilidades são alternativas ao burn-in, e de um ponto de vista científico, são questões comprovadas e conhecidas a respeito de nós. Essa queima, em contrapartida, parece uma explicação um pouco mais controversa.
O único método para comprovar essa hipótese seria comparar diretamente um aparelho novo a um usado, ou então fazer medições em algum equipamento ao longo do teórico amaciamento. No entanto, acho que nunca vi um audiófilo que acredita no burn-in fazer isso. Geralmente ele simplesmente ouve, acha que mudou – o que, como expliquei acima, possivelmente não é o caso –, e pronto, foi o danado burn-in. Esse método não é nem um pouco confiável. Nós humanos somos incrivelmente suscetíveis a ilusões; vide as famosíssimas ilusões de ótica. Podem ter certeza, as pessoas mais fáceis de serem enganadas não são os outros, somos nós mesmos. Além disso, vamos supor que o audiófilo consiga sim comparar um produto novo a um usado e veja diferenças. Ainda nesse caso, o burn-in vai ser só uma de diversas possíveis explicações (vou desenvolver mais adiante).
Com que propriedade alguém pode afirmar que um fone X só atinge seu verdadeiro potencial a partir de 300 horas? Será que a memória do usuário da performance do aparelho assim que saiu da caixa é apurada, quanto mais a níveis de detalhes? Duvido, quanto mais com essa precisão temporal – é uma mudança brusca, ou seja, a 290 horas a performance era pior? E será que não foi a percepção do usuário que mudou? E mais, não se esqueçam de que estamos falando de detalhes, o que envolve uma maior possibilidade de erro.
Enfim, supondo que testes sejam feitos. Conheço poucos. Bem, na verdade, só conheço três, e as conclusões são interessantes. Aqui vão:
http://www.innerfidelity.com/content/evidence-headphone-break
http://www.headfonia.com/test-burn-in-and-production-variations/
Basicamente, em alguns aspectos os artigos acham diferenças, e em outros não. Ou seja, eles tentam testar a hipótese levantada anteriormente (“o som do aparelho mudou”). Como dito anteriormente, a percepção de alguém comparando o que ouve com o que está na memória não é suficiente, e abre a possibilidade de a hipótese ser falsa. O que as pesquisas acima tentam fazer é justamente testar a afirmação. Porém, mesmo que o resultado seja positivo, o burn-in ainda não é nada além de uma de inúmeras possíveis explicações.
Os dois primeiros usam medições, e portanto, cientificamente, são mais válidos. O primeiro artigo conclui que o burn-in existe, mas dura segundos e, após certo tempo, o diafragma volta ao seu estado inicial e, quando estimulado novamente, volta a sofrer o amaciamento. O segundo conclui que existem diferenças, mas que grande parte delas podem ser atribuídas a problemas nas medições, decorrentes, por exemplo, do posicionamento do fone na dummy head. Já no terceiro, um avaliador compara dois fones e vê diferenças, mas ao mesmo tempo diz que muitos não as vêem.
Algumas considerações, contra e também “a favor” do burn-in – afinal, o objetivo desse texto é fazer as pessoas pensarem. No primeiro artigo, somente woofers foram testados, e é possível que eles sofram o efeito de forma diferente de fones. Então, eles podem não ser suscetíveis ao burn-in, enquanto fones podem. No segundo, como dito, as mudanças são pequenas e podem ser decorrentes de alterações no sistema de medição. Já no terceiro, as diferenças, que de acordo com o autor são realmente ínfimas, podem ser provenientes de alterações em lotes diferentes do fone. Ou seja, como vocês podem ver, a questão é complicada.
CONCLUSÕES
Pessoalmente, tive a oportunidade de comparar um produto saindo da caixa com um usado três vezes. A primeira, foi comparando um par de Dali Concept 2 saindo da caixa com um par que já tinha sido exposto a mais de 200 horas de música. A segunda foi quando troquei meu SE530 dentro da garantia por um novo. Fui ouvindo o antigo, com uma rachadura no cabo, por duas horas no ônibus. Voltei ouvindo o novo. A última foi quando tive a oportunidade de comparar um par NOS (new old stock) do AKG K1000 com um que havia sido efetivamente usado durante seus vinte anos de vida. Nas três situações, não ouvi diferença alguma.
Como eu disse no início, meu objetivo não é fazer com que as pessoas subitamente abandonem a crença no burn-in. É mostrar que esse fenômeno não é nada além de uma das explicações mais improváveis de uma mudança que, em primeiro lugar, não é comprovada.
Ou seja, a percepção de que o som mudou tem grandes possibilidades de não ser correta. E, mesmo que seja correta, o burn-in não passa de uma dentro de diversas explicações (como diferenças de lotes, exposição a diferentes condições, posição na cabeça, etc.). E, por isso, não merece ser usada vulgarmente como é, e muito menos considerada uma verdade absoluta, como vejo frequentemente acontecendo.
Pensando bem, essa percepção talvez não seja tão diferente do maluco da esquina. Assim como no burn-in, existem inúmeras explicações possíveis para ele ter visto o unicórnio alado. Ele estar efetivamente lá talvez seja a mais improvável delas.