Álbuns de Destaque: Kindred e Truant/Rough Sleeper EPs

Álbum: Kindred e Truant/Rough Sleeper EPs

Artista: Burial

Gênero: Dubstep/2step/Future Garage

Gravadora: Hyperdub

Lançamento: Fevereiro de 2012

Faixas de destaque: Ashtray Wasp, Truant

Agora vou falar sobre um tipo de música completamente diferente. Mas, nesse caso, preciso fazer uma introdução e falar sobre o artista e sua relação com o gênero. Dentro da música eletrônica existem infinitos sub-gêneros: dance, club, chill-out, ambient, trance, house, dubstep, drum n’ bass, 2step… posso ficar falando até amanhã. E existem vários “níveis” de eletrônica: desde Zero 7, um grupo majoritariamente pop, que usa instrumentos e uma banda real com toques de eletrônico, até artistas experimentais, obscuros e introspectivos como aquele sobre o qual falo hoje. Muitos dos limites que instrumentos tradicionais impõem não existem aqui, e com um computador, é possível fazer incontáveis alterações e modificações. Não só isso – a música eletrônica, em seus sub-gêneros mais recentes e obscuros, representa uma democratização da música. Qualquer um em casa, com um simples computador, mesmo sem qualquer conhecimento de música, mas com uma boa dose de paciência, é capaz de criar melodias.

Essa, para mim, é justamente uma das maiores belezas da música eletrônica. Como gosto muito, acompanho a cena, mas não me atenho ao mainstream, apesar de ser fã confesso de artistas como Deadmau5 e Kaskade. O que mais gosto no gênero, pelo menos conceitualmente, é precisamente a cena underground, com artistas como Burial, DFRNT, Scuba, Disclosure, Essáy, ViLLΛGE e distribuidoras como a Hyperdub, Warminal Records, Echodub e Cut. Essa cena é onde, para mim, as coisas interessantes acontecem. Temos artistas que não são bancados por gravadoras. São pessoas comuns, como eu e você, que estão expondo exatamente aquilo que querem expor através da música. As influências externas são muito menores. Não há pressão de mídia, de gravadoras… há a vontade de fazer música.

De certa forma, me lembra a cena grunge nos anos 80 e 90. Acho absolutamente fantástico que isso esteja acontecendo agora, na minha frente. Acabo descobrindo a página de alguns desses artistas no facebook e, como eu disse, são pessoas normais, que postam links para outras páginas de outras pessoas normais que também fazem música. E, como a troca de informações hoje é extremamente fácil, essas pessoas estão permanentemente conectadas umas às outras, cientes do que está acontecendo. O resultado é que esse estilo é vivo, pulsante, e evolui a cada minuto. E isso é visível para quem acompanha a cena.

Burial é uma dessas pessoas – a diferença é que ele redefiniu o dubstep e mudou para sempre a cena eletrônica mundial.

Ele começou como mais um garoto na Inglaterra que resolver fazer música. No entanto, entrou em contato com o produtor Kode9, da Hyperdub e chamou sua atenção. Em pouco tempo, o contato evoluiu e o primeiro CD foi lançado pela distribuidora, em 2006, intitulado Burial. O CD foi mundialmente aclamado como um verdadeiro marco na história do dubstep e da música eletrônica. É completamente diferente de tudo o que já foi feito: passa muito longe das pistas de dança, e lembra muito mais uma Londres vazia, às 4 da manhã. Os sons são distantes, melancólicos, com batidas que se arrastam sobre um mar de drones indefinidos, decorados com chiados e estalos. Por cima, há vozes longínquas, desamparadas, ecoadas e frequentemente ininteligíveis. Elas não são direcionadas ao ouvinte – ele está sozinho e escuta palavras e sílabas alheias jogadas pelas poucas almas vivas que o acompanham a essa hora da noite. O segundo CD, Untrue, foi lançado em 2007, e continuou a revolução causada pelo primeiro com o minimalismo singular de Burial. De acordo com o site Metacritic, foi o segundo álbum mais bem avaliado do ano.

O curioso era o anonimato de Burial. Houve, à época, muita especulação sobre sua verdadeira identidade; especulação que acabou quando, em 2009, o artista revelou que se chamava William Bevan – atitude que só veio à tona porque o garoto foi indicado ao Mercury Music Prize. Detalhe: ele postou uma foto na página do MySpace, disse seu nome e pronto. Entrevistas na internet são raríssimas e, quando existem, se restringem a textos. “Sou uma pessoa muito discreta e só quero fazer algumas músicas, só isso” é o que diz.

É, porém, indiscutível que Burial tenha exercido fortíssima influência na cena eletrônica mundial. Ouvindo outros artistas da cena, como por exemplo DFRNT – que aliás é de um sub-gênero diferente –, fica claro o toque de William Bevan. Colaborações com Thom Yorke, vocalista do Radiohead, e Massive Attack reforçam sua posição como um dos grandes gênios da eletrônica atual.

Agora que já falei sobre o artista, vou passar para a análise propriamente dita. Mas, apesar de gostar muito dos dois álbuns completos, acredito que o melhor de Burial pode ser encontrado nesses dois EPs: Kindred e Truant/Rough Sleeper. O formato usados nele é muito diferente daquele dos álbuns. Aqui temos, ao invés de faixas normais de 4 ou 5 minutos, completas, o que podemos chamar de suítes – faixas que vão de 7 a quase 14 minutos, e cada uma delas contém seções distintas, com uma progressão muito bem arquitetada.

Kindred abre com a faixa de mesmo nome, que já apresenta do que Burial se trata. Ela começa com algumas palavras jogadas, cracks de discos de vinil que lembram chuva e alguns pops e ruídos por cima de sons sintetizados de muita beleza. Tudo para quando uma batida de ritmo estranho começa, aliada a uma linha de baixo estranha e ameaçadora – em breve surgem acordes, aliando-se a vocais pouco distintos mas de muita beleza, e tudo parece uma bagunça planejada. No entanto, pouco após os 8 minutos, os sintetizadores do início voltam, trazendo de volta aquelas vozes que os acompanhavam e a batida que caracteriza a música: tudo passa a fazer sentido. Mas o melhor da música é o final. Após sobrarem apenas os cracks e pops de vinil, surge, do nada, uma nova batida, aliada a acordes que parecem trazer um misto de preocupação e determinação: uma nova visão sobre aquele momento na madrugada. Uma realização. E tudo desaparece da mesma forma que começou.

A segunda faixa, Loner, começa com a frase “There is something out there”, que dá passagem a uma belíssima melodia, permeada por sons de uma tempestade e os tradicionais cracks e pops. Tudo termina abruptamente e dá início à única batida 4/4 de Burial, trazendo uma nova seção que transmite o que me parece uma fantástica união do desespero trazido pela linha de baixo aliada à melodia preocupante com o amparo de uma voz que, apesar de ininteligível, traz conforto e beleza. Tudo progride com altos e baixos, até chegar ao clímax, em aproximadamente 5 minutos, que precede a terceira seção: que realiza o amparo. Tudo fica bem. No entanto, rapidamente tudo se quebra mais uma vez em desordem.

Por último, Ashtray Wasp, sem dúvida alguma uma das faixas mais bonitas que Burial já produziu. Na minha opinião, é uma obra prima do início ao fim – da majestia, complexidade, angústia, autoridade e comando da seção principal ao calmo final. Nota, aliás, para essa fantástica seção principal que parece sentar sobre uma batida frágil e suave, um belíssimo contraste.

O segundo EP, Truant/Rough Sleeper, abre com a faixa Truant. Logo nas primeiras notas vemos que não teremos o Burial melódico – e sim o lado ameaçador do artista, com aquele veneno que parece permear boa parte de suas peças. Temos uma batida dominante que apresenta duas partes distintas, com emoções indefinidas, mas que logo se dissolvem para dar caminho para o Burial mais imprevisível e temível. Uma nova batida, com um grave que chega com uma violência e uma certeza que, de alguma forma, parece andar de mãos dadas com uma certa doçura e condescendência. Em breve temos novos acordes que acentuam esse dicotomia, trazendo um ar de esperança ao desespero trazido aqui. Esse ar progride até um momento em que tudo desmorona diante das incertezas e do ar ameaçador de um gueto.

A segunda faixa, Rough Sleeper, é provavelmente a faixa mais feliz do artista, principalmente em sua segunda seção, com uma batida mais acelerada, acentuada por vozes oitavadas que mostram um lado muito mais feliz da cidade. É como uma celebração. As próximas seções continuam uma progressão que mostra diferentes visões desse momento.

Burial parece mostrar os sons de uma cidade. Nesses dois EPs, Burial nos leva para um passeio de ônibus na madrugada de uma metrópole, onde vemos a cidade de uma outra forma. Não é aquela cidade pulsante e viva que conhecemos. Ao contrário, vemos um outro lado daquilo ao qual já estamos acostumados. Todo o freneticismo de um lugar que explore com a população desaparece e dá espaço para singularidades estranhas, pequenos momentos inesperados que trazem emoções que talvez não conheçamos, ou ao menos das quais não nos lembramos. Esse passeio nos mostra justamente esses momentos, totalmente imprevisíveis, que mostram desamparo, angústia, solidão, medo, tristeza, admiração, felicidade e paz. Mas, independende das emoções, ele nos mostra sempre uma coisa: uma beleza estarrecedora. E, junto com ela, uma celebração pelo fato de estarmos vivendo para ver tudo isso acontecendo diante dos nossos olhos.

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